Os portuenses Dom Manuel Clemente (DMC), Bispo do Porto, e Álvaro Siza Vieira (ASV), arquitecto e prémio Pritzker e Leão de Ouro da Bienal de Veneza, tiveram um interessante tête à tête sobre arte sacra e arquitectura no Expresso, Primeiro Caderno, de 15 de setembro de 2012, pp. 22 e23. Ficam alguns apontamentos de relevo e reflexão:
Expresso – «Gaudí tornou-se católico devoto. O arquitecto Siza fez a igreja de Marco e não é crente. Já não é relevante o que parecia ser uma relação necessária?»
DMC – «Isso não significa que a pessoa não transcenda na obra que faz e que tudo aquilo que seja visão do mundo, sentimento profundo, de certa maneira não se materialize naquele espaço que constrói.»
ASV – «O espaço da igreja, hoje, é muito interessante para um arquitecto. Depois do Concílio houve muitas mudanças, não só na liturgia. O celebrante virar-se para a assembleia em vez de estar de costas altera totalmente a lógica do espaço tradicional de uma igreja. É um programa que exige muita reflexão, muita troca de ideias. Na altura tive reuniões com teólogos da diocese do Porto e falámos muito sobre essa transformação.»
Expresso – «Há uma arquitectura religiosa?»
ASV - «Na arquitectura de qualidade há qualquer coisa que se aproxima da religiosidade. Há esse esforço, que por vezes é conseguido, de pôr em relação tudo quanto existe no espaço. É pôr tudo a cantar»
Expresso – «A ideia de associar a inspiração criativa ao sobrenatural está em queda?»
ASV – «Há uma coisa que não deixa de ser curiosa. Algumas das grandes igrejas contemporâneas são feitas por não praticantes do catolicismo. Le Corbusier, que fez pelo menos duas das mais maravilhosas igrejas: Ronchamp e La Tourette. Uma igreja é destinada a uma comunidade religiosa específica, mas, além de ser um lugar de encontro com o que transcende, é um lugar de encontro de homens.»
Expresso – «Depois de séculos de criação artística feita para glória de Deus, a arte contemporânea despediu-se de Deus?»
ASV – «Haverá a que sim e haverá a que não. Estabelecer uma fronteira entre ‘isto é materialista’ e isto ‘é espiritual’ não é fácil, porque estes campos cruzam-se. Também há muita coisa de material no espaço da igreja. Pôr tudo isso em relação é que consegue uma qualidade que para muitos leva à elevação do espírito, à oração. Para outros não, mas há muitas formas de oração e de comunhão. Não é só dizer o Padre Nosso.»
DMC – «Uma certa estilização faz parte do caminho da vida e da religião. Creio que nesse sentido o cristianismo dá uma achega fundamental. (…)»
ASV – «Há episódios de excepção a todos os níveis da hierarquia da igreja, mas há um certo afastamento ou receio em relação à arte contemporânea. Não é fácil encontrar quem permita com total integridade projectar e construir uma igreja. Já tive um caso num projecto para a igreja de Âncora, que acabou por não se construir. (…)»
Expresso – «A Igreja tem dificuldades em gerir o embate entre arte popular e erudita?»
DMC – «Na relação entre uma arte mais erudita, que implica uma formação, quer do artista quer do receptor, e depois a chamada arte popular, o embate é muito grande. Colegas meus sacerdotes levaram por diante projectos com bons arquitectos, mas depois há o embate com a população, que não compreendia aquilo porque estava presa a projecções simbólicas muito precisas. E então, logo que o sacerdote vira as costas enchem o templo com tudo o que são as imagens e o gosto que às vezes consideramos simplesmente kitsch. Não é fácil.»
Nota final: Alguns monárquicos e conservadores em geral, que pouco abonam naquilo que defendem (pela imagem Neandertal que transmitem numa altura que são precisas soluções inovadoras), pois são cristalizadores, devem reflectir sobre os seus conhecimentos e opiniões relativamente à arquitectura em geral, sendo que esta é uma fortíssima componente para mostrar o quanto estão aptos (ou não) para representar um passo em frente na instauração de uma Monarquia Constitucional. Este artigo merece uma reflexão séria daqueles, repito séria, pois muitos defensores da Monarquia comportam um progressismo tão amplo cuja noção de arquitectura, em boa sorte, terá ficado no século XIX (para não dizer antes desse período). Quando virem uma obra que muitos apelidam de “monstro”, “caixote”, etc, procurem primeiro saber do seu enquadramento multidisciplinar, história e contexto no espaço. Nunca descurar que, quiçá, o Mosteiro dos Jerónimos, à época da sua construção, terá feito mais celeuma que o CCB hodiernamente!? Há que viver e perceber o nosso tempo, não se esqueçam disso.
Igreja de Marco de Canaveses (Arq. Álvaro Siza Vieira)
Igreja de Ronchamp (Arq. Le Corbusier)
Igreja de Nossa Senhora de Fátima | Lajedo | Ponta Delgada (Arq. Gomes de Meneses)
Sagrada Família | Barcelona (Arq. Antoni Gaudí)
Igreja da Santíssima Trindade | Fátima (Arq. Alexandros Tombazis)
Igreja de La Tourette (Arq. Le Corbusier)
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