“As Câmaras Municipais fazem do sistema natural um espaço verde e do espaço verde uma decoração”.
Gonçalo Ribeiro Telles tem 82 anos e é considerado o primeiro ecologista português. Monárquico liberal, ex-ministro de Estado e da Qualidade de Vida, fundador do Movimento Partido da Terra, teve ao longo da sua carreira, uma vasta intervenção política e cívica. Em entrevista à “Traços Urbanos” não poupa criticas ao rumo que a gestão urbanística tomou. O arquitecto paisagista deixa também alguns recados aos autarcas do país de quem diz “não terem a noção do que é o território”. A requalificação urbana, os PDM’s e a gestão dos espaços verdes foram alguns temas abordados.
Entrevista Paula Fidalgo | Fotos Armanda Nogueira
Paula Fidalgo – Pensa que a cidade e campo são dois espaços antagónicos ou pelo contrário estão actualmente em conflito?
Gonçalo Ribeiro Telles: Há um conflito provocado, agora, por um modelo de crescimento e de desenvolvimento económico completamente errado. A cidade e o campo estiveram sempre interligados, são indispensáveis. Não existe cidade sem campo, nem campo sem cidade. Tanto uma como outro são consistentes. Há uma interface entre os dois que nasceu com o abatimento das muralhas, com uma ligação de vida ou de morte … A cidade sem o campo morre. Eles fazem parte da mesma unidade de planeamento. Quando não existe essa interligação e planeamento surge o caos de que é exemplo a Área Metropolitana de Lisboa, assim como tantos outros locais.
PF: A requalificação urbana levada a cabo nas cidades surte algum efeito?
GRT: Requalificação urbana pode considera-se apenas a recuperação de áreas históricas que têm uma possível consistência para serem novamente recuperadas para uma vida moderna, uma vida da contemporaneidade. Todo o resto, para além das cidades, não há recuperação possível. Há a fazer uma nova política em que não deve existir mais consumo de solo vivo e solo ainda não urbano. Há que recuperar o desenvolvimento urbano em áreas de demolição, não nas cidades históricas mas nos subúrbios e nas cidades de betão. Os conjuntos urbanos de betão com mais de trinta, quarenta anos só têm uma solução: serem abatidos, demolidos… aproveitado o entulhado no próprio lugar e reconstruir-se uma nova cidade por cima desse entulho.
Em Espanha e nas Balneares nenhuma Câmara Municipal deixa construir em terreno que não é ou foi construído. Só se pode investir urbanisticamente em zonas a demolir. Em Portugal estamo-nos a afogar. Vamos criar situações de terceiro mundo e principalmente problemas graves de fome e de ambiente.
PF: Concorda com a construção em altura?
GRT: A construção em altura traz problemas graves tais como o incêndio. O revestimento das construções actuais é de tal forma combustível que os bombeiros não conseguem dar resposta por mais escadas que tenham. A construção em altura não é uma construção que resolva o problema de espaço.
O facto de empilhar as pessoas em andares até alturas enormes tem um grave inconveniente: provoca a morte da rua em benefício do elevador.
PF: Numa tertúlia realizada o ano passado, em Lisboa afirmou que as “cidades estão a construídas para nada”... Porquê?
GRT: Estão a construir cidades só por construir e a criar não o vazio do espaço, mas o vazio do espaço construído. Os andares vazios em toda a Área Metropolitana de Lisboa apavoram-me. Continua-se a construir densamente noutras áreas. Umas esvaziam-se para se construir outras. É todo um processo de asneira e de especulação. Basta ver o que está a suceder em Alcochete à volta do novo centro comercial e das urbanizações que estão a ser povoadas por gente que sai de Sacavém e da primeira coroa periférica. A primeira coroa periférica tem prédios podres com mais de trinta anos, elevadores estragados. O sítio é repelente… horrível para as pessoas. O que vai suceder a esta zona? Em Espanha seria demolida e reconstruída. Em Portugal vai continuar a alugar-se, não o andar mas o número de camas. Se o andar tiver 10 camas aluga-se por 1000 a 1500 euros.
PF: Como analisa as intervenções paisagísticas que têm vindo a ser feitas pelos nossos arquitectos, nomeadamente em Portugal?
GRT: As intervenções na paisagem são na maior parte dos casos, excepto num ou outro caso de grande categoria, feito por arquitectos portugueses lá fora. Os nossos arquitectos trabalham em Itália, Espanha e França. No nosso país não podem trabalhar porque o planeamento não permite construção de espaços verdes. Em Portugal, os espaços verdes são considerados pelos autarcas e pelos próprios governos espaços decorativos.
PF: Mas não devia ser assim?
GRT: Sem dúvida que não. Os espaços verdes são espaços que as cidades precisam para fazerem uma interface com o natural. Basta ver a Avenida da Liberdade. Aquilo é uma decoração pífia de muito mau gosto. As autarquias gostam mais de gastar dinheiro em rotundas com esculturas, algumas com enxadas postas ao alto para lembrar o antigo, que já não existe, e depois os repuxos. Isto não faz sentido. É incultura total e não serve para nada.
PF: Então qual é a solução?
GRT: A solução é fazer paisagem.
PF: Acha que a paisagem constitui ou não “o diagnóstico de uma organização do território”?
GRT: Na paisagem, os ciclos fundamentais à vida social, colectiva e ao ambiente da vida humana estão presentes através da circulação da água, da matéria orgânica, do ar dos animais. Por exemplo, muitas das pragas que afectam os povoamentos florestais (povoamentos para a celulose e madeira) resultam de não haver orlas na mata. Os próprios animais dessas matas são o encontro com a mata, com o campo aberto. E a mata e os campos abertos são zonas de grande biodiversidade, e é por isso, que muitos animais ficam espaventados e caiem todos em cima das árvores.
PF: A gestão dos espaços verdes pelas Câmaras Municipais está completamente ultrapassada?
GRT: Sim. A concepção de espaço verde actualmente corresponde ao espaço verde do século XIX. Não responde às necessidades actuais da própria gestão e da manutenção do sistema natural. Nas cidades, os espaços verdes são coberturas ajardinadas dos estacionamentos subterrâneos, são ruas arborizadas com árvores raquíticas.
Hoje a cidade estendeu-se pelo território e não pode deixar de ter agricultura. Há jardins românticos que são verdadeiros monumentos e que devem ser preservados. O que fazemos agora não pode ter as mesmas raízes do século XIX.
PF: Porquê?
GRT: O espaço natural da grande cidade tem de ser muito maior do que antes. A dimensão urbana tem que incluir a circulação da água, da matéria orgânica, da vida silvestre porque senão se torna num monstro. Em Lisboa já não temos o campo à porta.
Por exemplo, Paris está com culturas de milho dentro da cidade. E a interligação em Portugal tem de ser desse género. Aqui todos os vazios têm de ser preenchidos como está bem patente no Plano Director Municipal de Lisboa. Os vazios estão simplificados em áreas de oportunidade. Isto é um escândalo. Será que ninguém repara? O que não é construído é uma área de oportunidade. Em França, a agricultura é exercida por urbanos (30 por cento) e não agricultores. Tudo por causa das novas tecnologias. É muito vulgar um médico possuir uma exploração agrícola que fica a 200 ou 300 quilómetros da sua residência. Não é o mesmo que comprar um monte no Alentejo, colocar lá um relvado e uma piscina.
PF: Por falar em espaços verdes como está o projecto dos corredores verdes para Monsanto?
GRT: O projecto está arrumado. Já não se faz. São espaços vazios para encher com mais betão. Não havia verba para fazer o corredor, segundo Eduarda Napoleão, vereadora do Urbanismo da Câmara de Lisboa O espaço vai ser transformado em empreendimentos.
PF: Mais uma selva de betão …
GRT: Não sei o que vamos fazer daqui a 30 anos a este betão. Não podemos levar o entulho… O bom betão só vive 70 anos. O bloco Marselha, monumento nacional, é tão caro recuperá-lo que é preferível deitá-lo abaixo e construí-lo de novo. O betão é efémero.
PF: Como são as cidades do século XXI?
GRT: Antes de mais é preciso ver onde começa e acaba a cidade. Hoje, o grande problema do país é a morte das aldeias. E a morte das aldeias é um problema de cidades. O aglomerado urbano que vive do abrigo, do encontro das pessoas, do tecto, do ambiente é a cidade. Mas isso também existe e tem de existir na aldeia. A dimensão é que é diferente. O que está aqui em causa não é a cidade que dentro de pouco tempo terá 80 por cento da população a viver nela incluindo as aldeias. As aldeias não podem despovoar-se como está a acontecer… fechar escolas porque não há meninos e depois a natalidade não existe. Dentro de pouco tempo isto é um país de velhos, de asilos urbanos.
PF: Este despovoamento das aldeias terá a ver com os constrangimentos dos Planos Directos Municipais?
GRT: Sim. Com os actuais modelos de PDM não há recuperação urbana das aldeias para os aldeões. Há recuperação de algumas aldeias para o turismo. Mas não há turismo sem aldeões. Estamos completamente errados. A recuperação das aldeias passa pelo restabelecimento da agricultura local. E isso é que não se quer. Alguns economistas foram burros e outros especuladores quando disseram que a agricultura não tinha significado económico, que se podia comprar tudo no estrangeiro. Assim, vamos passar fome porque a agricultura de proteínas e amido é fundamental e está cada vez mais cara a nível internacional. Primeiro, porque os países que as produzem facilmente são só seis: Estados Unidos, Canadá, Argentina, África do Sul, Nova Zelândia e a Austrália. E agora eles têm um problema grave. Grande parte dessa produção (produtos de proteínas e amido) que encare-se a nível mundial foi deslocada para o terceiro mundo não morrer de fome e não sair do asfalto das zonas desenvolvidas. E depois há outro problema: o petróleo. Quando ele sobe, sobem os preços dos produtos. Nós em Portugal não temos divisas para aguentar o futuro.
PF: Porque é ainda não foi adoptado um modelo para responder aos desafios que a cidade do século XXI coloca?
GRT: Porque se pratica um urbanismo zonado. Cada zona tem as suas características, os seus índices de volumetria e de construção, o que transforma a cidade num autêntico puzzle.
PF: Em 2003, o Governo de Durão Barroso tentou alterar as regras e as áreas da REN (Reserva Ecológica Nacional) e RAN (Reserva Agrícola Nacional. Os próprios autarcas vêem-nas como um obstáculo ao crescimento das cidades. O que pensa da questão e de alguns destes propósitos?
GRT: As REN e as RAN como propósitos são imbatíveis. Já ninguém tem coragem de dizer que nenhuma delas deve deixar de existir. A questão que se coloca é que ambas têm de se integrar num planeamento coerente e global do território. E, neste momento, não há esse planeamento, essa noção de continuidade necessária a todo um sistema natural.
As REN e as RAN como propósitos são imbatíveis. Já ninguém tem coragem de dizer que nenhuma delas deve deixar de existir. A questão que se coloca é que ambas têm de se integrar num planeamento coerente e global do território. E, neste momento, não há esse planeamento, essa noção de continuidade necessária a todo um sistema natural.
PF: Ao longo da sua carreira alertou o país, os políticos, os Governos para problemas como o desastre que iria ser a primeira geração das Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR), previu as cheias catastróficas que aconteceriam nos anos de mais chuva devido à impermeabilização dos solos com a construção em leitos em cheia, explicou porque é que a floresta iria continuar a arder… Apesar dos avisos que fez quase ninguém os levou em conta e até o chegaram a classificar de “lunático”...
GRP: O melhor é perguntar isso aos políticos, ao governo. Nesta entrevista já fiz a previsão da fome. Hoje, o problema não é de religiões nem económicos, mas sim de cultura e língua. Quem defender a sua cultura, tem de defender o seu espaço, a sua identidade e assim terá um futuro garantido. Ao longo dos anos, Portugal tem combatido isso. A nossa vizinha Espanha está à espera… A imprensa espanhola fala de uma certa independência à Catalunha, País Basco, Andaluzia e Valência. Estas integram-se na Europa. São independentes para dentro e monipolares para fora.
O pólo que querem dominar com a língua espanhola e com este sistema é a Península e a América do Sul. Portugal está a tornar-se uma excentricidade dentro da Península e nós não damos por isso. O príncipe Filipe visitou todos os centros de língua espanhola no Brasil, que têm um prestígio que não tem nenhum português. Se nós não defendermos a nossa cultura, identidade o melhor é arrumarmos as botas. Espanha tem cada vez mais uma grande força na Europa. As línguas oficiais da União Europeia escolhidas foram o inglês, francês e o alemão. Mas houve um país que protestou: a Espanha. Ela vai ser a quarta e não quer uma quinta.
PF: Participou no lançamento do projecto de requalificação do Jardim Portas do Sol, em Santarém. Na sua opinião e face às características naturais da cidade de Santarém, como é que a cidade ou o seu crescimento se deve articular com as mesmas?
GRT: Santarém está perdida. Todo o envolvimento de Santarém é um desastre tremendo. Dizem que é preciso salvar as Portas do Sol, concerteza! Vamos aproveitar o que tem de bom e dar-lhe uma utilidade actual. Mas temo pelo que se pode fazer.
Santarém está em cima de uma plataforma de calcário e tem aqueles vales que saem do planalto. O grave é quando os vales estão obstruídos. Quando não estão obstruídos impedem a sua saída com as novas urbanizações. O pior que fizeram foi tirar as hortas dos vales. Não havendo hortas, a água não se evapora. Através da vegetação, a água entra e segura, senão há evaporação. A água concentra-se e aquilo vai por ali abaixo. É um problema de sustentabilidade, de recuperação, de paisagem. As Câmaras Municipais fazem do sistema natural um espaço verde e do espaço verde uma decoração.
PF: Foi um dos impulsionadores e continuador da licenciatura de arquitectura paisagística fundada pelo professor Caldeira Cabral, na Universidade de Évora. Quais os frutos dessa licenciatura?
GRT: Os frutos são óptimos em termos humanos. Temos excelentes arquitectos mas que não funcionam no nosso país. O ano passado ganharam o prémio de Urbanismo do Senado de Berlim com a recuperação de um logradouro bombardeado através da criação de cisternas para recolha de águas da chuva para uso local (factura energética).
Os nossos arquitectos estão a trabalham muito bem em Itália, França e Espanha e já ganharam muitos concursos. Em Portugal não há concursos. Maior parte deles já têm afilhados e as Câmaras Municipais não gostam dos arquitectos paisagísticos porque trazem aquilo que se chama sistema natural. E o sistema natural não dá votos.
Não se vê imediatamente. Pela minha geração já não temo, mas temo pelos mais novos quanto ao seu futuro.
PF: Actualmente faz parte da Comissão do Programa Nacional do Ordenamento do Território. Qual o cenário previsto?
GRT: Estou horrorizado. O cenário que se está a traçar para o território é um litoral e um Algarve completamente urbanizado, e um interior sem gente para o eucalipto, uma vez que a agricultura não serve para nada porque não entra no mercado internacional.
O primeiro defensor do desenvolvimento sustentado
Ecologia era uma palavra desconhecida em Portugal quando o arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles, muito antes do 25 de Abril, se fez ouvir para defender o ordenamento do território e o desenvolvimento da sustentabilidade.
Durante o Estado Novo militou na Juventude Agrária Católica, acentuando a sua oposição ao regime nas sessões do Centro Nacional de Cultura. Com Francisco Sousa Tavares, em 1957, fundou o Movimento dos Monárquicos Independentes, a que se seguiu o Movimento dos Monárquicos Populares, assumindo-se claramente contra a ditadura. Em 1967, aquando das cheias de Lisboa, foi à televisão explicar a calamidade e apontar o dedo à má política de urbanização do Governo. Após a Revolução de Abril, fundou o Partido Popular Monárquico, o Movimento Alfacinha e o Partido da Terra.
Homem de ideias firmes e de uma frontalidade a toda a prova, foi empossado secretário de Estado do Ambiente em Outubro de 1975 e a partir de Setembro de 1981 exerceu funções de ministro de Estado e da Qualidade de Vida. Foi ainda professor catedrático da Universidade de Évora e vereador da Câmara Municipal de Lisboa, além de deputado da Assembleia da República.
Aos 82 anos, este lisboeta nascido em 1922, mantém a irreverência que se lhe tornou característica. Continua a criticar os “disparates” que se fazem no país. Do quarto andar de um prédio da baixa pombalina, onde ainda trabalha, continua a observar a “sua” cidade. Hoje, porventura afastado da vida política activa, o arquitecto paisagista “exigente” faz ainda questão de intervir.»
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