Este é um microcosmo apartidário embora ideológico, pois «nenhuma escrita é ideologicamente neutra*»

*Roland Bartes

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quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Prof. Doutor Carlos Cordeiro - Docente da Universidade dos Açores - Excertos da Entrevista ao Açoriano Oriental de 05/10/2009


"Mas o regime republicano acaba por não alterar em quase nada o sistema autonómico que tinha sido conseguido ainda no tempo da Monarquia."

«Aqui o povo trabalhava alheio às revoluções

Açoriano Oriental - Entrevista conduzida pelo jornalista: Rui Jorge Cabral.

A.O. - Há quase um século atrás, como foi vivido aqui nos Açores o dia 5 de Outubro de 1910?
C.C. - Foi vivido naturalmente, porque a revolução teve lugar em Lisboa e, como dizia João Chagas, foi transmitida depois por telégrafo a todo o país… Não há nota de ter havido aqui grandes euforias e só nos dias seguintes se fizeram as cerimónias de proclamação da República. É curioso vermos que quando foi proclamada a República aqui em Ponta Delgada e içada a nova bandeira, houve o cuidado de, com o mesmo respeito e a mesma dignidade, se arriar a bandeira do Portugal monárquico. Aliás, chamava-se mesmo a atenção para o facto das grandes glórias nacionais se terem verificado ao longo do regime monárquico… Houve aqui, como noutras zonas do país, uma certa cautela. Claro que logo a seguir se dá a extinção dos dois grandes partidos monárquicos – o Partido Progressista e o Partido Regenerador – este último, aliás, logo no dia 7 de Outubro saúda as novas autoridades, enquanto que o jornal do Partido Progressista, o Correio Micaelense, continua em publicação até 1911, mantendo sempre uma grande dignidade e não se transformando imediatamente, como aconteceu com muitos jornais nacionais, em republicano. Aliás, nos Açores, a imprensa tradicionalista, monárquica e católica, manteve sempre uma grande dignidade e até alguma coragem no ataque às novas instituições.

A.O. - Os açorianos, tradicionalmente conservadores, acolheram bem a revolução?
C.C. - É difícil responder a essa questão porque hoje só temos fundamentalmente a imprensa da época para tentarmos reconstituir o que se passou. Mas não há uma contra-revolução organizada ou manifestações e agitação pública contra a República, embora a imprensa anti-republicana se tivesse mantido com grande vigor. (...) ...

A.O. - Como é que se deu a transferência do antigo poder monárquico para a nova ordem republicana aqui nos Açores?
C.C. - Normalmente, com a nomeação de novas autoridades, embora nalgumas câmaras, quem já lá estava fosse republicano ou próximo disso… Até porque, por exemplo, os monárquicos do Partido Progressista achavam que deviam seguir a linha definida pelo seu líder a nível nacional, no sentido de fazerem uma espécie de ‘resistência passiva’, ou seja, ‘não se mexam nem lhes mexam… Eles por si cairão”… Mas há também o caso dos grandes autonomistas de 1895, como Aristides da Mota, José Maria Raposo do Amaral ou Gil Mont’Alverne de Sequeira, que achavam dever intervir, mesmo que fosse apenas ao nível da crítica. E há ainda a perspectiva dos jornais católicos, que iam no sentido de afirmar que o problema não era um problema do regime, mas sim do modo de funcionamento das instituições, apelando por isso à união de esforços para constituir um verdadeiro partido conservador aqui nos Açores.

A.O. - Quais foram as grandes figuras açorianas desse tempo?
C.C. - (...) Azevedo Gomes, (...) Francisco Luís Tavares (...). Mas é bom não esquecer também que, quando falamos da República, parece às vezes ainda hoje em dia que foi uma coisa extraordinária, mas em termos de valores e práticas políticas, se bem virmos as coisas, todos os grandes valores liberais vinham já da Monarquia Constitucional, como o valor da liberdade e da cidadania ou mesmo o direito ao voto. Os republicanos levantaram muito a questão do voto universal, mas há estudos que demonstram ter havido eleições e leis eleitorais no tempo da Monarquia Constitucional que tinham um universo potencial de votantes superior mesmo ao que aconteceu já na República. Na década de 1870, houve uma lei eleitoral que era praticamente a do sufrágio universal e na própria República não se conseguiu logo o voto universal, uma vez que era preciso as pessoas saberem ler e escrever para poderem votar e serem também chefes de família… Ou seja, se tivermos em conta que 70 por cento da população - ou talvez até mais - era analfabeta…

A.O. - Quais foram as principais mudanças que se verificaram na sociedade açoriana com a implantação da República?
C.C. - A República teve uma grande preocupação com a instrução primária, mas evidentemente uma coisa é falar-se nisso, outra é concretizar… (...).

A.O. - A recém conquistada Autonomia de 1895 foi afectada ou, pelo contrário, ganhou com a implantação da República?
C.C. - Os republicanos tinham desde o começo no seu programa a descentralização administrativa, que era uma das bases importantes do seu programa. Mas o Partido Republicano Português no poder acaba por se revelar centralizador, até porque tinha certos receios, por exemplo, do municipalismo, por causa dos ‘influentes’ locais, muitos deles tradicionais monárquicos que poderiam trazer problemas às novas instituições… Com a Autonomia, acontece um pouco o mesmo e não houve da parte do Partido Republicano Português qualquer acentuação da Autonomia, embora Francisco Luís Tavares, enquanto deputado, tenha feito passar uma lei que proibia o Estado de transferir para os Distritos açorianos quaisquer serviços, sem passar simultaneamente novas receitas… Mas o regime republicano acaba por não alterar em quase nada o sistema autonómico que tinha sido conseguido ainda no tempo da Monarquia.

A.O. - Apesar das dificuldades que já referiu, os Açores conseguiram mesmo assim crescer economicamente durante a Primeira República?
C.C. - No geral, a estrutura económica herdada da Monarquia mantém-se (...). Não houve, por isso, alterações significativas em termos económicos, no quadro de um sistema liberal, sujeito aos bons ciclos económicos, mas também às crises… A primeira República democrática, implantada em 1910, durou 16 anos, portanto menos de metade do actual regime democrático em que vivemos. Apesar de curta, essa experiência democrática ficou marcada por uma forte instabilidade social, com assassinatos políticos e greves que afectaram fortemente o país.

A.O. - Os Açores sofreram de alguma forma essa instabilidade social?
C.C. - Não… Isso não aconteceu aqui e foi sempre um dos trunfos e uma das afirmações constantes da imprensa açoriana menos afecta ao Partido Republicano Português. Era a ideia de que nós, nos Açores, nada tínhamos a ver com a crise de Portugal, em termos globais, porque aqui o povo trabalhava alheio às revoluções e às bombas e acontecia que os nossos impostos iam para o continente e não se verificava aqui nenhum desenvolvimento. Essa foi uma luta constante nesse período e é por essa altura que conseguimos eleger deputados regionalistas pelos Açores, na defesa do aprofundamento de uma Autonomia que já estava na altura esgotada e na demarcação dos Açores em relação ao ‘descalabro’ a que se tinha chegado a nível nacional, para o qual os Açores não estavam a contribuir, antes pelo contrário…

A.O. - Cem anos depois, os ideais republicanos realizaram-se, pelo menos na sua maioria, mesmo com meio século de ditadura pelo meio?
C.C. - Concretizaram-se sobretudo depois do 25 de Abril, porque só a partir daí os grande ideais da chamada ‘propaganda’ republicana se começaram a concretizar, como o sufrágio verdadeiramente universal, ou mesmo a solidariedade social e a própria liberdade e cidadania, que eram ideais expressos pela primeira República, mas que nessa altura acabaram por não ter efectivação.»

Fonte - Açoriano Oriental, edição impressa, publicado a 5 de Outubro de 2009, páginas 10 e 11.

Publicação intergral do artigo - Sendo subscritor do A.O. Online, consulte aqui.

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